Artigo de João Pedro Rocha e Ana Eggert, integrantes do Movimento SOS Vargens

Não tem sido um caminho fácil. Como toda discussão socioambiental no Rio de Janeiro, a preservação das Vargens, de suas florestas, áreas de baixada e consequentemente da cultura e do modo de vida do povo que ali vive tem conquistado poucas batalhas.

O mais recente capítulo de disputa na região está na criação de duas Unidades de Conservação em toda extensão do território das vargens, que compreende os bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e Recreio dos Bandeirantes.

E para entendermos melhor o que aconteceu, precisamos voltar um pouco no tempo. Em 2016, ao longo das discussões da terrível proposta do PEU das Vargens (versão 2015), integrantes de movimentos sociais da região solicitaram à SMAC através de ofício que se criassem grupos de trabalho para aprofundar os estudos realizados em 2014 que constataram ser esta uma das últimas áreas remanescentes da cidade com um ecossistema de características brejosas e várias espécies ameaçadas de extinção.

Considerando toda sua fragilidade e importância de ser uma ligação entre as unidades de conservação existentes como Parque Municipal Natural Marapendi e Chico Mendes e o Parque Estadual da Pedra Branca concluiu ser extremamente necessária a criação de uma nova unidade de conservação. Após intensos estudos constatou-se que o ideal seria a criação de duas e não apenas uma UC, sendo uma Área de Proteção Ambiental, APA, que permite uma pequena ocupação humana e um Refúgio de Vida Silvestre, REVIS.

O primeiro revés desta disputa surge em 27 de outubro, quando é publicado o decreto de criação da APA do Sertão Carioca. O desenho da APA foi o mesmo apresentado para a população, e foi comemorado pelos movimentos sociais, contudo o REVIS, que deveria ser criada em conjunto não apareceu. As justificativas são as mais diversas, em especial a necessidade de discutir melhor os limites desse REVIS. Ora, se o REVIS já havia sido discutida entre população, técnicos, movimentos sociais e universidades durante evento público, com quem mais faltou discutir os limites do REVIS? E que ator é esse que é capaz de alterar o que foi aceito pelos cidadãos presentes na reunião pública? Quem indicou resposta para essa pergunta foi o próprio prefeito, que semanas antes, no dia 25 de setembro, em lançamento de uma obra na região das Vargens, apontou que os agentes imobiliários estavam pressionando por mudanças.

E as mudanças vieram. Após 5 meses e intensa pressão popular, o REVIS foi finalmente criada. Vitória dos movimentos sociais, dos moradores e das associações. Contudo, a conquista veio com mudanças na regra do jogo. A APA, criada em outubro ‘ganhou’ mais 400 hectares. E o REVIS, como você já pode imaginar, foi reduzida na mesma proporção. Além disso, os parâmetros urbanísticos da APA foram alterados, e os potenciais construtivos da área do REVIS foram transferidos para terrenos no entorno.

Imagine uma área que inicialmente era de ‘proteção integral’, agora liberada para construção de condomínios. Há quem diga que em encontro recente com secretário do governo no Recreio dos Bandeirantes, o mesmo já anunciou em tom de vitória a futura construção de uma série de condomínios “alphaville” nestes terrenos ‘conquistados’ pelo mercado imobiliário.

E o que farão com os moradores de áreas de risco? O planejamento habitacional prevê apenas construções de classe média valorizando cada vez mais o m2 da região e inviabilizando pessoas de baixa renda adquirir uma residência no local. O bairro ficará inchado e os novos moradores atrairão novos serviços como prestadores autônomos, pequenos comerciantes, escolas e hospitais. Se esses serviços vierem de fato a existir, onde irão morar seus funcionários ? Ou terão que se deslocar por transportes públicos já deficitários até o outro extremo da cidade? A região sequer possui hoje uma escola de ensino médio e hospital, o que obriga os moradores a se deslocar para bairros distantes perigosamente de bicicleta ou saturando ainda mais o trânsito quando usam carros.

Redes de esgotos não atendem todos os domicílios e quando existem alguns não se conectam à rede pois é oneroso e acabam usando fossa séptica ou despejando diretamente nos rios e córregos. Rede de águas pluviais são praticamente inexistentes sendo usadas antigas canaletas, as populares sarjetas, que simplesmente são ignoradas pelos construtores e aterradas provocando assim o aumento dos alagamentos em dias de chuvas fortes. Exatamente o que ocorreu com o Museu Casa do Pontal envolvido pela construção de altos edifícios que fazem sombra sobre o prédio impedindo a recepção da luz do sol e cujas construtoras aterraram as sarjetas construídas nos anos 40 para ajudar a escoar as águas das chuvas para os córregos. Com o assoreamento dos canais principais que recebem toda essa água ocorreram sucessivos alagamentos e o Museu foi obrigado a mudar de endereço, pois seu acervo único corria riscos.

O Museu do Pontal tem seu acervo protegido pelo Patrimônio Histórico Municipal, mas as vidas perdidas nas enchentes de 2010 não tinham essa segurança. A cada chuva o volume de água aumenta em um espaço de tempo cada vez menor e o solo da região não tem capacidade de absorção, nem as ruas possuem estruturas que desaguem todo volume inesperado devido às mudanças climáticas. Quantas famílias mais serão prejudicadas com suas casas destruídas pelas águas ? Quantas vidas serão perdidas para que a sociedade e os governantes entendam de uma vez por todas que é urgente preservar a natureza e que é preciso respeitar seus limites e fragilidades?

Avançando alguns anos na história, no ano de 2021, foi apresentado publicamente no dia 13 de agosto, a proposta de criação destas duas Unidades de Conservação na região. Aprovadas e aclamadas pelos moradores e movimentos sociais presentes no encontro, é possível ver na imagem a seguir os limites das Unidades de Conservação propostas no dia do encontro. Em verde, a proposta de REVIS Campos de Sernambetiba e em amarelo a APA do Sertão Carioca.

A área de grande fragilidade ambiental do REVIS perdeu espaço para a futura construção de condomínios de luxo no seu entorno. Estes, com vista eterna para o ‘verde’. A que custo?

A população quer explicação do por que alterar o planejado e aprovado publicamente sem nenhum tipo de transparência. As chuvas das últimas semanas mostram claramente o que vai acontecer cada vez com mais frequência na região. Alagamentos, deslizamentos, perdas incalculáveis e um impacto desigual e injusto principalmente sobre a população mais vulnerável.

Essas mudanças observadas no REVIS, claramente impactam comunidades como Santa Luzia, Vila Taboinha, 30 e Cachorro Sentado. Estamos vendo diariamente os impactos da liberação de condomínios de prédios na área, em especial sobre essas comunidades, e isso vai piorar. A comunidade Santa Luzia ficou sete dias embaixo d’água, mesmo sem chuvas intensas na cidade, devido a obstrução de rios e canais do entorno da comunidade para expansão de condomínios e outros empreendimentos. Isso tem que mudar!

Estamos vivendo um momento de aumento dos eventos extremos devido às mudanças climáticas e não podemos ignorar essa discussão no planejamento urbano e preservação ambiental da nossa região. Não é apenas a população das Vargens que perde, é toda a cidade. Precisamos juntos mudar esse cenário.